Por Vinicius O. S. Guimarães*
Por esta razão, nós também, desde o dia em que o ouvimos,
não cessamos de orar por vós, e de pedir que sejais cheios do conhecimento da sua vontade, em toda a sabedoria e inteligência espiritual”
O Brasil é o penúltimo lugar no ranking de alfabetização na América do Sul, segundo fonte do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, divulgado em 2007. O Brasil tem aproximadamente 11,1 % da população que não sabem ler e escrever, isto representa algo próximo a 14 milhões de pessoas. Deste modo, o Brasil faz parte de um grupo de países alvo da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura – Unesco, equiparando-se a outros países como Egito, Marrocos, China, Indonésia, Bangladesh, Índia, Irã, Paquistão, Etiópia e Nigéria. Tristemente, dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – Pnad, divulgado em 2007, apontam que menos de 50% dos alunos de 15 a 17 anos estão no ensino médio no Brasil. Por estas e outras razões, o analfabetismo lingüístico brasileiro se constitui num dos maiores desafios sócio-educacionais.
Nas periferias brasileiras se encontram a maioria destes aglomerados de analfabetos, agravando a desigualdade social e abafando perspectivas de vidas. Paradoxalmente (e divinamente) foi neste cenário caótico que a Igreja Brasileira conseguiu se estabelecer e crescer, principalmente a linha evangélica denominada Pentecostal. Há pesquisadores que admitem que a Igreja se tornou o ponto de referencia para estas comunidades em estado de vulnerabilidade social, pois nas periferias há ausência do Governo, pouca infra-estrutura e distanciamento dos centros acadêmicos, entre outras razões. Assim, nas periferias brasileiras surgiu a Igreja, como que sendo uma “luz no fim do túnel” do analfabetismo e combatendo a desigualdade social.
A Igreja se estabeleceu nas periferias como um ponto de reconstrução e reintegração social. Assim sendo, a proposta eclesial se demonstrou nobre e satisfez pressupostos bíblicos. Contudo, para que tal iniciativa pudesse influenciar de forma significativa as comunidades carentes seria necessário um grupo de pessoas capacitadas intelectualmente e teologicamente, o que invariavelmente não aconteceu. As grandes Igrejas que tinham condições de fazer algo para diminuir o analfabetismo ou de minimizar as discrepâncias sociais não quiseram sair da redoma de conforto presente nas igrejas dos centros metropolitanos. O resultado era inevitável, surgiu nas periferias um novo modelo de analfabetismo, que será denominado: analfabetismo bíblico.
O analfabetismo bíblico surge originalmente desta incapacidade intelectual e teológica dos grupos religiosos das periferias, que por vez foram intencionalmente “esquecidos” pela própria cristandade mais abastada. Por uma ausência de discipulado, os líderes evangélicos das periferias tiveram que aprender sozinhos como entender a bíblia, mesmo sem entender de língua portuguesa. Estes analfabetos igreijeiros de baixa classe social às vezes conseguem ler o texto bíblico e quase sempre não conseguem interpretar. E então, por falta de orientação espiritual e lingüística, eles distorceram e distorcem os textos bíblicos, ou pior, como não sabem interpretar, a “válvula de escape” mais tangível foi espiritualizar o texto por meio das famosas “revelações”.
Estes analfabetos bíblicos são frutos do desapreço da Igreja Brasileira. As igrejas deveriam ter desenvolvido um bom plano educacional de alfabetização, e posteriormente um excelente plano educacional de teologia. Por esta ausência lingüística e teológica tem-se que admitir que interpretar erroneamente os textos bíblicos foi o único caminho que estes cristãos da periferia conseguiram trilhar para não perderem a fé. Portanto, culpar estes por não usarem os princípios hermenêuticos para corretamente interpretar as Sagradas Escrituras é no mínimo fingir não ver a realidade social em que estes estão inseridos. Os analfabetos bíblicos da periferia são antes de qualquer coisa analfabetos lingüísticos, ou seja, eles erram por falta de conhecimento e por serem indubitavelmente limitados gramaticalmente.
O caminho de volta para refazer as lacunas do analfabetismo bíblico nas periferias parece ser dificílimo, pois várias destas igrejas desfrutaram de um crescimento numérico. E, tristemente, a numerolatria – veneração por crescimento numérico na igreja, se tornou o “fiel da balança” para mensurar se algo está certo ou errado na cristandade. Sendo assim, os olhos estão postos no fim, não no meio, e como o fim é distante demais para se realmente ver é mais cômodo acreditar que “vai dar tudo certo” e que este analfabetismo bíblico das periferias é apenas a “multiforme graça de Deus” e/ou maneiras de se viver a “liberdade cristã”. Assim, um grande erro eclesiástico se tornou mais aceitável pelas cegas massas evangelicais.
Os que ingenuamente são analfabetos bíblicos por falta de iniciativas sociais podem reescrever uma nova história nas periferias do Brasil, pois o que lhes faltam é somente qualificação, e isto se adquire em cursos. Contudo, há outro tipo de analfabeto bíblico que não se encontra nas periferias brasileiras, mas sim nos grandes centros urbanos do país. Este segundo tipo de analfabetos bíblicos é o que realmente destroem a Igreja, pois estes têm conhecimento da verdade, mas intencionalmente distorcem a mensagem bíblica a fim de ludibriar os fiéis. Estes são analfabetos por convicção e conseguem tornar rentável a distorção de textos sagrados, anulando completamente os princípios básicos da hermenêutica bíblica. Os analfabetos bíblicos das periferias o são por falta de oportunidades, os analfabetos bíblicos dos centros urbanos o são por desmoralização.
Os analfabetos bíblicos dos centros urbanos são pessoas altamente instruídas linguisticamente, mas completos ignorantes no que tange à teologia e estudo bíblico. A premissa básica para que haja a proliferação destes analfabetos bíblicos é simples, pois um povo sem instrução bíblica é facilmente manipulável. Um povo sem direção teológica acredita em tudo sem questionar as reais intenções por detrás das engenhosas oratórias dos líderes. Uma igreja sem conhecimento profundo das Sagradas Escrituras precisa ficar motivando as pessoas todos os domingos, o que os torna altamente dependentes de programas eclesiásticos dominicais. Um arraial sem cultura teológica prefere sentir a ter que pensar, preferem música a ter que ouvir pregações, preferem o lúdico a ter que utilizar a caneta.
Os analfabetos bíblicos dos centros urbanos são enfermos demasiadamente perigosos e auto-destrutivos para a cristandade. Estes vivem numa pandemia degenerativa, pois desconstroem a centralidade bíblica no seio da igreja, incitam uma neurose desmedida aos líderes, valem-se da fé como meio de satisfação pessoal e contaminam a verdade salvífica de Cristo Jesus. Estes analfabetos bíblicos visam enfraquecer as massas com a ausência de Bíblia nos cultos, evitado assim que as pessoas sejam seres pensantes e agentes de transformação. Sempre discursam mensagens que não tem implicação fora do ambiente eclesiástico dominical, o que provoca um retardo espiritual incalculável nos ouvintes.
Os analfabetos bíblicos dos centros urbanos são cristãos sem os pilares da teologia o que favorece imperceptivelmente a proliferação do sincretismo religioso. Por exemplo: a oração pelo copo com água – prática do espiritismo que visa à fluidificação da água o que supostamente ajuda no equilíbrio do corpo físico e espiritual; o comércio de relíquias sagradas (e.g. arca da aliança, cruz e etc) – práticas do catolicismo romano medieval que visam a personificação do sagrado e a aproximação com o divino; a veneração pelo templo como Casa de Deus – prática do judaísmo que entendia que Deus habitava literalmente e limitadamente no Templo, por isto o salmista carinhosamente o chamou de Casa de Deus.
As causas deste analfabetismo bíblico dos centros urbanos são inúmeras, mas todas têm uma mesma origem: líderes despreparados teologicamente. Algumas mudanças comportamentais poderiam ajudar, por exemplo, o simples fato das Igrejas exigirem dos candidatos a vocação pastoral um curso de teologia reconhecidamente competente já minimizaria substancialmente este problema. Contudo, tal alínea merece uma ressalva por atualmente haver vários cursos de teologia no Brasil que são meras fachadas acadêmicas, pois não estimulam o pensar teológico, não “provocam” os alunos a produzirem um saber bíblico e não constroem uma teologia útil para a edificação da Igreja.
A banalização do título de pastor no Brasil foi outro fator que corroborou de forma expressiva para a sedimentação dos analfabetos bíblicos nas igrejas tupiniquins. Há tempos atrás era exigido um compêndio de exigências morais, éticas, familiar, espirituais e teológicas dos candidatos ao episcopado. Entretanto, as ordenações em muitas denominações evangélicas brasileiras se resumem em nepotismos e interesses políticos. A falta de exigências intelectuais e espirituais favoreceu a banalização do título de pastor, mas não anulou o poder de influencia deste sobre as massas. Daí tem-se analfabetos bíblicos pastoreando ovelhas que por “tabela” o serão também.
E por fim, há analfabetos bíblicos no Brasil, pois os brasileiros por natureza confundem incapacidade crítica com ser receptivo, confundem falta de convicção com ser compassivo e confundem desinteresse social com ser tolerante. O que a Igreja Brasileira está precisando é de bons pastores-professores de teologia que sejam apaixonados pela igreja ao ponto de não desistirem dela. Educadores teológicos que sejam capazes de criticar os erros da igreja brasileira, mas que descortinem um caminho melhor, possível e mais bíblico. Pastores-professores que sejam alfabetizados biblicamente ao ponto de se disporem a lutar por uma (re)construção intelectual e espiritual no seio da Eclésia, quer estes estejam na periferia ou nos centros urbanos.
“Sustenta-me conforme a tua palavra, para que viva, e não me deixes envergonhado da minha esperança. Sustenta-me, e serei salvo, e de contínuo terei respeito aos teus estatutos”.
Que Deus nos ajude!